terça-feira, 6 de outubro de 2009

O mais terrível


"O mais terrível não era a menina me chamando de "tio" e pedindo um trocado, ela de pé no chão, o asfalto e eu no meu carro de bacana..O mais terrível era eu escolhendo a cara e voz para dizer que não tinha trocado, desculpe, como se a vergonha tivesse um protocolo que a absolvesse. O mais terrível foi que ela era tao pequena que a cusparada não me atingiu
Somos boas pessoas, bons cidadãos e bons pais mas somos tios relapsos. Nossos sobrinhos enchem as ruas de nossa cidade,cercam nossos carros,invadem nossas vidas e insistem que são da nossa família, e não temos nada para lhes dar ou dizer alem de esmola e desculpas.
Na família brasileira “tios” e sobrinhos tem um dialogo de ameaça e medo, revolta e remorso e poucas palavras. Nenhum consolo possível, nenhuma esperança, nenhuma explicação. O que dizer a uma sobrinha cuja cabeça mal chega à janela do carro e tenta cuspir na cara do tio? Feio. Falta de educação. Papai do céu castiga. Paciência, minha filha, este é apenas um ciclo econômico e a nossa geração foi escolhida para este vexame. Você aí desse tamanho pedindo esmola e eu aqui sem nada para te dizer, agora afasta que abriu o sinal. Não pergunte ao titio quem fez a escolha, é tudo muito complicado e, mesmo, você não entenderia a teoria. Vai cheirar cola, para passar Vai morrer, para esquecer. Vai crescer pra me matar na próxima esquina..
A historia, dizem, terminou, e os mocinhos ganharam. Os realistas, antiutópicos, os racionais. Ficou provado que solidariedade é antinatural e que cada um deve cuidar dos apetites dos seus. Ou seja, ninguém é “tio” de ninguém. A família humana é um mito, o sofrimento alheio é um estorvo e se miséria á sua volta te incomoda, compra uma antena parabólica. Ninguém é insensível dizem os mocinhos, mas a compaixão não funciona. Todos esses anos de convivência com a dor dos outros, que deviam ter nos educado para a compaixão, nos educaram para autodefesa, para cuspir primeiro. Os bons sentimentos faliram, dizem os mocinhos. Confiemos no futuro do mercado que não tem sentimentos, que tritura gerações entre seus dedos invisíveis, pra que se envolver? Afasta do carro que abriu o sinal.
Mas mais terrível do que tudo é eu ficar aqui, escolhendo frases para encher papel, até cuidando o estilo, já que é domingo. Como se fizesse alguma diferença. Como se isso fosse nos salvar, o tio da sua impotência e cumplicidade e a sobrinha anonima do seu destino. Desculpe."

(VERISSIMO, Luis Fernando. Traçando Porto Alegre. 5. ed. Porto Alegre: Artes e oficios, 1995. p. 87-88.)

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